Onde sonham as formigas verdes PDF

Title Onde sonham as formigas verdes
Author Beatriz Melo
Course ANTROPOLOGIA I
Institution Universidade Federal da Bahia
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Artigo sobre o documentário "Onde sonham as formigas verdes"...


Description

Universidade Federal da Bahia Faculdade de Direito Sociologia Jurídica

Beatriz Melo de Sousa

“ONDE SONHAM AS FORMIGAS VERDES”: UMA ANÁLISE SÓCIO-JURÍDICA E ANTROPOLÓGICA

Salvador 2014

RESUMO O presente trabalho faz uma análise crítica sobre o longa-metragem “Onde sonham as formigas verdes”. Utiliza-se, para isso, de conceitos, discussões e questionamentos da Antropologia e da Sociologia Jurídica, objetivando expor conflitos culturais e jurídicos existentes nas sociedades modernas e demonstrar a importância dessas ciências para o seu entendimento e resolução. PALAVRAS-CHAVE: “Onde sonham as formigas verdes”; fato social; pluralismo. ABSTRACT This paper makes a critical analysis of the feature film “Where the green ants dream”. Is used, for this, concepts, discussions and questioning of Anthropology and Sociology of the Juridical, aiming to expose existing cultural and legal conflits in modern societies and to demonstrate the importance of these sciences to their understanding and resolution. KEYWORDS: “Where the green ants dream”; social fact; pluralism. 1. INTRODUÇÃO O longa-metragem “Onde sonham as formigas verdes”, dirigido pelo cineasta alemão Werner Herzog, estreou no Brasil em 1984, retratando a dramática disputa entre culturas distintas por uma mesma terra: “No coração selvagem da Austrália, um grupo de aborígenes de uma tribo em extinção defende um local sagrado contra o avanço dos tratores de uma companhia de mineração. É o local onde sonham as formigas verdes. Perturbar o seu sonho irá destruir a humanidade, eles dizem. Eles entram em conflito com as leis da Austrália moderna, e a disputa é feita em um tribunal” (sinopse). 2. PERSPECTIVA SÓCIO-JURÍDICA E ANTROPOLÓGICA Sob os pontos de vista sociológico e antropológico, atentos para as relações humanas ao longo do tempo e em diferentes espaços, a obra apresenta inúmeros aspectos a serem explorados. O mais evidente é a questão cultural, que se faz presente em todo o enredo e

embasa as próximas discussões. Definida pelo antropólogo britânico Edward Burnett Tylor como “o conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, o costume e todas as demais capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade”, a cultura é o que diferencia e origina conflitos entre os nativos australianos, considerados “primitivos”, e os exploradores de urânio, auto-intitulados “civilizados”. Os grupos não compartilham os mesmos códigos sociais e realizam, por isso, uma comunicação falha, o segundo considerando “desviantes” as práticas culturais do primeiro por não entendê-las. Exemplo dessa incompreensão é visto nas cenas em que o homem branco irrita-se com a resistência do grupo aborígene frente as suas máquinas, sem assimilar a ligação que existe entre eles e o lugar desde tempos remotos. Outro momento simbólico acontece quando um dos cientistas tenta, alienadamente, negociar com a tribo a utilização das terras, oferecendo algo que só possui valor em sua própria comunidade, regida pela lógica do capital, e novamente ignorando a presença das sagradas formigas verdes. O filme também pode ser analisado a partir das hierarquias sociais e culturais, exploradas pelo antropólogo e sociólogo Denys Cuche em “A noção de cultura nas ciências sociais”. Segundo o autor, as culturas nascem de relações sociais desiguais, desembocando em uma hierarquia cujo topo é sempre ocupado pela classe dominante e sua respectiva maneira de viver. A cultura dominada, representada pelos aborígenes, seria aquela que evoluiu sem desconsiderar a dominante – a invasão das terras para exploração e a imposição de uma disputa jurídica, durante a qual todos se vestiam a rigor –, mas podendo resistir a ela em maior ou menor grau – os protestos e o testemunho do ancião, considerado mudo pelos autos do processo em função de falar um dialeto extinto, incompreendido por qualquer outro ser humano. Clifford Geertz, antropólogo americano, traz, em seu texto “Nova luz sobre a antropologia”, importante contribuição para o entendimento do longa-metragem, a partir da noção de etnocentrismo revelada no sentimento de superioridade cultural dos integrantes da Ayers Mining Company sobre os nativos australianos. Apresenta também a metáfora do trem do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que, adaptada para o contexto de “Onde sonham as formigas verdes”, embarca os dois grupos em trens distintos, viajando em sentidos paralelos e opostos e, por isso, obtendo uma visão borrada, deturpada da realidade alheia. Para Geertz, vencer esse distanciamento seria uma tarefa da antropologia aliada ao relativismo cultural, conceito segundo o qual não é possível julgar de um prisma externo valores

diferentes dos próprios. Herzog defende, nesse ponto, a preservação não somente ambiental das terras ricas em urânio, mas também cultural, do significado que possuem para o povo que as habita. Outra relação possível entre a obra e os estudos antropológicos faz-se através do evolucionismo cultural. Tendo como seus maiores expoentes Lewis Morgan, Edward Burnett Tylor e James George Frazer, a escola fundamentava-se na monogenia, usando de características externas das sociedades (parentesco, magia, religião, entre outras) para compará-las e classificá-las em diferentes estágios de evolução. A ideia de que existem culturas em níveis mais avançados que outras, assim como o darwinismo, o determinismo e o etnocentrismo, por exemplo, serve de argumento para a pretensa dominação exercida pela empresa mineradora sobre o povo que milenarmente ocupava a terra das formigas verdes. Com grande suporte teórico e metodológico de Émile Durkheim, surge logo depois o funcionalismo. Ao promover um dos primeiros empreendimentos de pesquisa sobre a cultura de uma determinada área geográfica por diversas óticas, a nova perspectiva rompe com o evolucionismo e abre espaço para o trabalho de campo, centrado na observação participante. Este está diretamente relacionado ao filme por intermédio do geógrafo Lance Hackett, que, após um primeiro contato com intenso choque cultural, decide permanecer no local do conflito para conhecer melhor os aborígenes e, assim, alcançar resultados positivos nas negociações. No decorrer dos acontecimentos, a personagem transforma seu modo de enxergar o outro e a si mesmo e chega ao ponto de defender a luta daqueles que antes considerava ignorantes, inferiores. Em meio às Revoluções Francesas e Industriais, que transformavam a realidade e as relações sociais, e influenciado pela filosofia positivista, que pregava maior rigor científico, Durkheim tentou criar leis (fórmulas) para as ciências sociais. Sua primeira e principal contribuição foi a definição do objeto da sociologia como o fato social, dotado de exterioridade, coercitividade e generalidade. Ele consiste em maneiras de agir, pensar e sentir que antecedem e ultrapassam o indivíduo (exterior), que exercem sobre ele um poder de coerção (coercitivo) e que valem para todos (geral). O direito como fato social é indicador das solidariedades mecânica e orgânica presente nas sociedades. A solidariedade mecânica é típica de sociedades nas quais prevalece a consciência comum ou coletiva, um conjunto de crenças, sentimentos e conhecimentos

compartilhado e homogêneo. A coesão é mantida, portanto, nesse caso, em função da uniformidade existente, e identificada pelo direito penal, que pune as condutas desviantes. A solidariedade orgânica, por sua vez, predomina nas sociedades mais complexas e heterogêneas, marcadas pela superação do coletivo pelo indivíduo da chamada consciência individual. Nessas sociedades, a coesão é fruto do alto grau de divisão do trabalho e especialização e a decorrente interdependência de seus membros; seu indicador é o direito contratual, que busca harmonizar interesses diversos e restituir danos. Confrontando as sociedades representadas em “Onde sonham as formigas verdes”, a tribo aborígene seria mantida por uma solidariedade mecânica, enquanto a sociedade australiana, por uma solidariedade orgânica. A tribo australiana é uma típica sociedade que possui direito, leis próprias e regulação de conflitos, mas não há, nela, entidade abstrata centralizadora do poder, como o Estado, nem, portanto, sistema judiciário. Isso não impediu, porém, que sua causa fosse submetida a julgamento nos moldes da cultura ocidental e, por conta dessa imposição, derrotada. Trata-se de caso muito semelhante aos que ocorrem, no Brasil, com os indígenas, cuja cultura e território sofrem graves interferências, privadas e públicas, motivadas cegamente por questões econômicas. Essa passagem do filme traz à tona a questão do pluralismo jurídico. Trata-se do reconhecimento de mais de um ordenamento jurídico dentro de uma mesma sociedade, o do Estado e os difusamente produzidos, que tem como caracteres: a coexistência de ordenamentos; o reconhecimento de um direito produzido pela sociedade; a admissão da sobreposição da realidade social sobre a jurídica; a produção por “novos sujeitos sociais” (elementos organizados em torno de novos pleitos); e a crise do positivismo, com a necessidade de criação de uma sistemática que atenda às novas demandas. Wolkmer (2001) diz: “Ao contrário da concepção unitária, homogênea e centralizadora, denominada de ‘monismo’, a formulação teórica e doutrinaria do pluralismo designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si. O pluralismo enquanto concepção ‘filosófica’ se opõe ao unitarismo determinista do materialismo e do idealismo modernos,

pois advoga a independência e a inter-relação entre a realidade e princípios diversos”.

O pluralismo pode ser estatal, produzido e controlado pela sociedade e autorizado pelo Estado, ou não estatal, toda fonte não reconhecida ou mesmo reprimida pelo Estado. O direito, as leis próprias e a regulação de conflitos na tribo australiana constituiriam um pluralismo não estatal, na medida em que, quando confrontados na forma do ordenamento legítimo, foram ignorados, vencidos, não reconhecidos. 3. CONCLUSÃO É notório o fato de que Werner Herzorg aborda, no longa-metragem “Onde sonham as formigas verdes”, produzido há 30 anos, inúmeras e variadas problemáticas extremamente atuais e abrangentes, muitas vezes de maneira sutil e desapercebida para os olhares distantes das análises sociológicas e antropológicas. Percebe-se, então, a complexidade dos conflitos entre culturas, sociedades e sistemas jurídicos divergentes e a importância de sua melhor compreensão através das ciências sociais para uma mediação mais justa e respeitadora da dignidade, história e patrimônio de cada povo. FONTES QUINTANEIRO, Tânia. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, 2ª Ed. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. 2. ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001....


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