A construção da imagem indígena no discurso moderno PDF

Title A construção da imagem indígena no discurso moderno
Author L. Araújo Corrêa
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A construção da imagem indígena no discurso moderno Luís Rafael Araújo Corrêa1 O objetivo básico deste breve ensaio é refletir a respeito da imagem indígena construída a partir do advento da modernidade. Considerando importantes autores pertinentes ao debate referente a essa questão a fim de melhor ...


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A construção da imagem indígena no discurso moderno Luís Rafael Araújo Corrêa1

O objetivo básico deste breve ensaio é refletir a respeito da imagem indígena construída a partir do advento da modernidade. Considerando importantes autores pertinentes ao debate referente a essa questão a fim de melhor entender a construção dessa representação, buscar-se-á ainda analisar como a modernidade incidiu sobre a vida tradicional das populações indígenas inseridas nos antigos aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro. Por fim, este trabalho visa demonstrar o descompasso que existente entre essa imagem e a realidade mediante a análise da atuação das populações indígenas na contemporaneidade.

I – O índio e a modernidade Para elucidarmos a imagem construída em relação aos indígenas a partir do advento da modernidade, é fundamental considerar as especificidades do conceito moderno de história que se formula em meio ao contexto das luzes na segunda metade do século XVIII. Nesse sentido, as proposições teóricas de Koselleck são de suma importância. De acordo com esse pensador alemão, ao contrário de épocas anteriores, quando o futuro estava diretamente relacionado às experiências passadas, na modernidade a experiência não seria suficiente para a composição do horizonte de expectativa. Ao invés disso, o futuro, profundamente influenciado pelas idéias de progresso, seria não apenas diferente, mas melhor do que o passado. Como ele bem destaca, “na era moderna a diferença entre experiência e expectativa aumenta progressivamente, ou melhor, só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”2. Dessa maneira, Koselleck salienta que a 1

Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e professor das redes estadual e municipal do Rio de Janeiro. 2 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006. p.101.

história assume paulatinamente o significado de um processo temporal no qual passado, presente e futuro compõem uma linha contínua rumo a uma única direção: o progresso. Assim, A modernidade se quis uma liberação de toda a referência ao passado. Ela se opôs à idéia de história como “mestra da vida”. Nela, o passado não esclarece o futuro, pois não lhe dá lições. A história, como um sujeito universal, um singular coletivo, autônomo e poderoso, realiza o trabalho de autoprodução. A diferença deste mundo novo, moderno, em relação ao antigo é que ele se abre ao futuro e ao novo. Os tempos passados foram pulverizados. O presente não tem direito de durar. O passado e o futuro não se recobrem mais – são assimétricos. No presente, a história é inovação constante. Ela é um processo coerente, 3 unificado e acelerado da humanidade em direção ao futuro utópico .

Essa nova percepção que advém da modernidade refletiu diretamente sobre a forma como os povos indígenas passaram a ser apreendidos no pensamento ocidental. Diante da relevância cada vez maior do evolucionismo e da crença de que o que está por vir será sempre melhor do que o que passou, os povos indígenas passaram a ser situados nas etapas iniciais da escala evolutiva humana, encarados como povos primitivos e sem história, uma vez que eram desprovidos de qualquer progresso. Como bem observa Reis, “o olhar científico do século XIX significou a radicalização da confiança no projeto moderno”, de modo que por intermédio da filosofia da história moderna “o historiador pode diferenciar povos inferiores e povos superiores, povos mais e menos livres, povos mais avançados e mais atrasados”4. Mais do que isso, a ciência histórica “ao mesmo tempo esconde e executa um projeto político: os povos mais morais têm o direito ao poder e até à violência”5. Isso justificaria, portanto, as intervenções assimilacionistas levadas a cabo pelos Estados e pelas autoridades políticas em relação aos índios: o Ocidente, convicto de que é dotado da verdade histórica, elege-se como aquele encarregado de levar a civilização e o progresso aos povos não-europeus. Em relação ao Brasil, identificamos a pertinência dessa imagem que se construiu a partir da modernidade ainda no século XVIII. Analisando o discurso oficial 3

REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p.31. 4 REIS, José Carlos. Op. Cit. p.39. 5 REIS, José Carlos. Op. Cit. p.39.

sobre os índios em meados do referido século, Ângela Domingues destaca que a imagem construída a respeito dos mesmos muito diferia do ideal indígena relacionado à pureza dos primórdios da colonização6. Longe disso, a autora salienta que “o Novo Mundo não era o mundo que os europeus tinham perdido, tal como os ‘selvagens’ não correspondiam ao conceito de como eram os homens no seu estádio mais puro e ao qual os europeus tinham renunciado quando se tinha ‘domesticado’”7. No que tange o pensamento político da época considerada, “o Estado era o responsável e devia interferir no processo evolutivo dos seus súbditos menos protegidos rumo à civilização e à cristianização, à felicidade, ao bem-estar e ao progresso”8. Nesse sentido, Sebastião José de Carvalho e Melo, muito influenciado pelas explicações científicas e morais típicas do contexto intelectual de meados do século XVIII, considerava os índios como inferiores, não tendo atingido o mesmo grau de progresso que os europeus9. Porém, como bem pontua Domingues, tal visão partia do pressuposto que “os homens americanos podiam ser recuperados por meio de alterações no meio ambiente, pela educação e civilização”, de modo que era a partir de tal argumento que Carvalho e Melo justificava a intervenção da Coroa portuguesa10. Esse ponto de vista, longe de representar unicamente a posição pessoal daquele que viria a ser o Marquês de Pombal, remetia a um discurso que foi assumido por boa parte das figuras políticas portuguesas deste período e que, em longo prazo, constituiria a visão a respeito das populações indígenas até boa parte do século XX11. Fica patente, portanto, que no pensamento moderno os índios, alheios ao progresso, deveriam ser conduzidos à razão. Assim, essa perspectiva, expressa exemplarmente no Diretório – política assimilacionista que visava integrar os indígenas à sociedade colonial através da 6

Sobre as imagens construídas em relação aos índios nos primeiros séculos de colonização portuguesa, ver: RAMINELLI, Ronald J. Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1996. 7 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000. p.315. 8 DOMINGUES, Ângela. Op. Cit. p.315. 9 Nesse sentido, dentre os pensadores que influenciaram o reino de Portugal no período considerado, estão David Hume, Buffon e William Robertson. Ver: DOMINGUES, Ângela. Op. Cit. p.316 10 DOMINGUES, Ângela. Op. Cit. p.317. 11 Dentre os personagens, estão, por exemplo, Francisco Xavier de Ribeiro Sampaio, D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho e D. Marcos de Brito e Noronha. Ver: DOMINGUES, Ângela. Op. Cit. p.317.

conversão dos mesmos em súditos indistintos12 – pode ser muito bem percebida na pena daqueles que estavam em contato com a efervescência intelectual das luzes. O tema, aliás, despertava notável interesse, sendo recorrente o surgimento de diversas proposições quanto aos métodos mais eficazes para conduzir os índios do primitivismo à plena civilidade. Nesse sentido, vale à pena trazer à tona as considerações do procurador-geral do Senado da Câmara do Rio de Janeiro – José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho – em uma carta à Rainha em 1791, na qual expunha as suas posições a respeito da civilização dos índios e dos meios que julgava como os mais eficazes para tal intento13. Nesta correspondência elucidativa, é interessante observar o quanto o referido tema ainda era permeado de interesse e de discussões, sendo inquestionável, no entanto, que os índios encontravam-se na infância da história. Na correspondência, Coutinho presta-se, antes de tudo, a criticar os métodos adotados até aquele momento. Em sua perspectiva, era um erro transformar as aldeias em vilas e permitir que os índios governem uns aos outros, pois fazer isso é “querer principiar por onde as nações civilizadas acabam”, de maneira que deveriam seguir etapa por etapa rumo ao progresso14. Para Azeredo Coutinho, o índio vivia em liberdade absoluta e “sem mais necessidades do que aquelas que ele em poucas horas satisfaz com o seu braço”, de modo que não estava preparado para a arte do “bem governar”, considerada como “a mais sublime de quantas os homens tem inventado”15. Para promover a civilização dos índios, a educação e o trabalho seriam os meios indispensáveis, sendo estas destinadas em primeiro lugar aos pais, que, devidamente educados, pensariam sempre “no bem e na felicidade de seus filhos” e os fariam “marchar sempre firme e seguro, sem os deixar jamais afrouxar”16. Assim, a atuação proposta levaria os índios a “perder[em] alguma parte da liberdade absoluta, para gozar 12

“Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário”. In: ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. Apêndice. 13 Carta do procurador-geral do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, à rainha. Histórico Ultramarino. RJ Avulsos, Cx. 289, D. 5. 14 Carta do procurador-geral do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, à rainha. Histórico Ultramarino. RJ Avulsos, Cx. 289, D. 5. 15 Carta do procurador-geral do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, à rainha. Histórico Ultramarino. RJ Avulsos, Cx. 289, D. 5. 16 Carta do procurador-geral do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, à rainha. Histórico Ultramarino. RJ Avulsos, Cx. 289, D. 5.

de outras muitas partes de uma maior liberdade relativa”17, de maneira que o primitivismo era a justificativa básica para as ações e intervenções. Se no final do século XVIII e no início do século XIX, como acabamos de perceber, a imagem do índio passou a expressar paulatinamente o primitivismo e a infância da história humana em virtude da influência dos pressupostos da modernidade, a partir da segunda década do século XIX, quando se dá a independência do Brasil e os esforços de construção de um Estado-nação homogêneo, essa associação cristaliza-se ainda mais. A modernidade, amplamente marcada pela ideia de progresso, remeteu a um fatalismo inequívoco em relação aos indígenas, de maneira que o destino desses povos tidos como primitivos seria a completa eliminação ou a assimilação à comunidade nacional. Em consonância com os novos ares da modernidade que influenciavam o Brasil recém-independente, os membros do IHGB endossaram a perspectiva que situavam os indígenas contemporâneos no atraso e na distância em relação ao progresso. Como bem ressaltou John Monteiro, “tema de presença constante no pensamento brasileiro do século XIX, o contraste entre o índio histórico, matriz da nacionalidade, tupi por excelência, extinto de preferência, e o índio contemporâneo, integrante das ‘hordas selvagens’ que erravam pelos sertões incultos, ganhava, pouco a pouco, ares de ciência”18. Nesse sentido, Varnhagen resume bem o que estamos tratando ao ressaltar que “de tais povos na infância não há história: há só etnologia”19, explicitando, então, que a ausência “dos marcos de historicidade reconhecidos pela cultura histórica oitocentista”20 corresponderia a um inegável primitivismo por parte dos indígenas. O futuro dos índios, entretanto, seria inevitável nessa perspectiva tão orientada pela modernidade: sobre isso, Carl Friedrich Philippe von Martius anotou, em 1838, que “não há dúvida: o americano está prestes a desaparecer”, de modo que “outros povos viverão quando aqueles infelizes do Novo

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Carta do procurador-geral do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, à rainha. Histórico Ultramarino. RJ Avulsos, Cx. 289, D. 5. 18 MONTEIRO, John Manuel. “As ‘raças’ indígenas no pensamento brasileiro do Império”, em: Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz / CCBB, 1996. p.15. 19 VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História Geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1978. p.30. 20 TURIN, Rodrigo. Os antigos e a nação: algumas reflexões sobre os usos da antiguidade clássica no IHGB (1840-1860). Disponível em: http://acrh.revues.org/index3748.html . Acessado em: 13/03/2012.

Mundo já dormirem o sono eterno”21. Ou seja, em meio ao evolucionismo e ao ideal de progresso tão caros àquele momento, os indígenas eram tidos como evidências vivas de uma época pré-histórica. Mesmo que não houvesse consenso quanto ao estado dos índios, isto é, se eram naturalmente selvagens ou se poderiam ser civilizados e assimilados à sociedade, ou mesmo quanto ao passado, havendo os que defendiam que “de modo algum podem ser eles tomados por nossos guias no presente e no passado em sentimentos de patriotismo ou em representação da nacionalidade”22 e os que reservavam um lugar de destaque aos nativos nesse passado23, fato é que não havia lugar para os índios no futuro: face à marcha inevitável do progresso, na perspectiva moderna eles seriam eliminados por resistirem a este avanço ou assimilados por intermédio do processo civilizador. A propósito, tal imagem não se limitou a influenciar a historiografia, tendo sido marcante também na produção intelectual em áreas diversas ao longo do século XIX e boa parte do século XX. Na antropologia, que tem sua origem ligada aos registros etnográficos de povos e etnias que estariam fadadas a desaparecer em virtude do avanço do progresso, isso pode ser visto de forma emblemática na exposição antropológica de 1882, organizada pelo Museu Nacional e que foi um dos eventos científicos mais importantes da época no Brasil. Nela, os índios eram expostos em grupos vivos e em cenários que simulavam o seu cotidiano. Na época, foi editada a “Revista da Exposição Anthropologica Brazileira”24, de maneira que “os artigos da revista, dirigida por Mello Moraes Filho e escritos por especialistas brasileiros, sempre se referiam aos indígenas como representantes dos mais primitivos estágios da evolução humana em contraposição aos evoluídos homens brancos caucasianos”25. O índio era apresentado, então, como um fóssil vivo e em vias de extinção em virtude dos avanços da civilização, o que denota, assim, a forte incidência das idéias de progresso

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MARTIUS, Carl Friedrich. O Estado de Direito entre os Autóctones do Brasil. São Paulo: Melhoramento, 1982. p.70. 22 VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História Geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1978. p.28. 23 Turin destaca as diferenças no que diz respeito a apreensão dos indígenas pelos membros do IHGB, embora subentenda que todos eles estivessem convictos que não havia lugar para o índio no futuro. Ver: TURIN, Rodrigo. Os antigos e a nação: algumas reflexões sobre os usos da antiguidade clássica no IHGB (1840-1860). Disponível em: http://acrh.revues.org/index3748.html . Acessado em: 13/03/2012. 24 Disponível em: http://www.obrasraras.museunacional.ufrj.br/0029.html 25 MARCOLIN, Neldson. “Selvagens” no museu. In: Revista Fapesp, nº 175, Setembro/2010.

e do evolucionismo advindos da modernidade. Mesmo na primeira metade do século XX, quando a antropologia já havia passado por importantes mudanças teóricas e metodológicas, a associação dos indígenas ao primitivismo, o que os situariam fora da história, pode ser vista nas proposições teóricas de Claude Lévi-Strauss, nas quais diferencia

as

“sociedades

frias”,

consideradas

primitivas

e

quase

imóveis

temporalmente, e as “sociedades quentes”, civilizações que se movem dentro da história e com ênfase no progresso26. Enfim, fato é que as ideias e os pressupostos da modernidade foram em grande medida responsáveis pela construção de uma imagem vigorosa que associava os indígenas a dois aspectos básicos: o primitivismo – seja em virtude da decadência de um passado glorioso ou por conta de uma natural selvageria – e o inevitável desaparecimento frente ao progresso. II – As mudanças da modernidade: o caso das aldeias do Rio de Janeiro Se a modernidade imprimiu uma determinada imagem aos indígenas, há de se destacar também que ela incidiu diretamente sobre a vida cotidiana dos mesmos, provocando consideráveis mudanças. Refletindo a respeito da reprodução do mundo da vida a partir da modernidade, Habermas conclui que este não se dá mais através da tradição, mas sim pela busca do consenso. Com isso, o autor quer dizer que a razão e a verdade transitam de uma realidade em que se apresentavam como conteúdos universais que expressavam a rigidez da tradição, para outra em que eram estabelecidas de forma comunicativa e consensual entre os atores sociais. Logicamente, Habermas destaca ainda que o advento da modernidade foi responsável, então, por acabar progressivamente com o mundo da tradição e com as relações comunitárias tradicionais, pautadas na autoridade dos usos e dos costumes27. Bauman corrobora tal perspectiva ao salientar que os grupos de parentesco, as comunidades tradicionais e os laços socialmente estabelecidos a partir dos usos e dos costumes, “derreteram-se” em função da modernidade28. Tendo isso em vista, a afirmação da 26

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. trad. Tânia Pellegrini. Campinas, São Paulo: Papirus, 1997. 27 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990. 28 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

modernidade em relação a grupos fortemente amparados na tradição, bem como os reflexos que tiveram sobre os mesmos, constitui um objeto de estudo de singular importância. Nesse sentido, focaremos então as comunidades indígenas do Rio de Janeiro no século XIX, época em que as ditas comunidades sobreviviam com dificuldades face às constantes investidas da sociedade envolvente e que a região em questão inseria-se em um contexto de significativas transformações no bojo da modernidade. Antes, vale a pena nos debruçarmos um pouco mais sobre as referidas comunidades. A origem das mesmas está ligada à política de aldeamentos estabelecida pela Coroa portuguesa nos primórdios da colonização. Influenciada pelos pressupostos defendidos pelo padre Manuel da Nóbrega em seu “Plano das Aldeias” – no qual defendia a fixação das missões religiosas, até então itinerantes29 –, a política de aldeamentos visava reduzir os nativos americanos em um espaço determinado a fim de serem cristianizados. E não apenas isso: a intenção era converter os índios em súditos cristãos e úteis ao empreendimento colonial, seja como agentes da colonização, força militar para a defesa do território ou mesmo como mão-de-obra para os colonos e a para a própria Coroa30. No entanto, ao analisarmos detidamente o cotidiano das reduções, podemos perceber que, muito embora o território destinado às aldeias indígenas seja fruto de uma imposição externa, os índios que para lá foram apropriaram-se daqueles espaços como áreas de sobrevivência, de modo que tais áreas possibilitariam a reconfiguração étnica, cultural e social dos mesmos. Ou seja, no interior dos aldeamentos, os índios que lá viviam compartilharam uma longa experiência em uma vida comunitária, desenvolvendo, então, um forte sentimento de pertença e identidade que estava diretamente ligada à vida coletiva31. Considerando o fato de que estamos falando de um grupo que se orientava com base nos usos e nos costumes advindos de uma vivência comum, aspecto que fundamentava a identidade étnica dos que viviam nas aldeias, não restam dúvidas que estamos tratando de uma comunidade tradicion...


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