Title | Do Antissemitismo como Paixão: a propósito das Reflexões sobre a Questão Judaica de Jean-Paul Sartre |
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Author | Renato Lessa |
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Do Antissemitismo como Paixão: a propósito das Reflexões sobre a Questão Judaica de Jean-‐‑Paul Sartre1 Renato Lessa2 ...il’y a des gens qui sont attirés par la permanence de la pierre”. Jean-‐‑Paul Sartre, Réflexions sur la Question Juive. Nota intro...
Do Antissemitismo como Paixão: a propósito das Reflexões sobre a Questão Judaica de Jean-‐‑Paul Sartre1 Renato Lessa2 ...il’y a des gens qui sont attirés par la permanence de la pierre”. Jean-‐‑Paul Sartre, Réflexions sur la Question Juive.
Nota introdutória O livro Reflexões sobre a Questão Judaica foi publicado em dezembro de 1946, em Paris, pelo editor Paul Morihien 3 . Em dezembro de 2016, o Centro Internacional Vidal Sassoon para o Estudo do Antissemitismo, da Universidade Hebraica de Jerusalém, organizou e sediou importante colóquio internacional a respeito dos setenta anos de publicação da obra4. Especialistas de diferentes países trouxeram de volta o ensaio de Sartre e submeteram-‐‑no a conjuntos diversos de indagações. Até sua morte, em 1980, a presença de temas judaicos na atividade intelectual de Sartre foi considerável, tal como atestam registros de suas conversas com Benny Lévy, ex-‐‑dirigente da Esquerda Proletária (maoísta) e, desde 1973, secretário pessoal do filósofo e importante expoente da intelectualidade judaica francesa5. Natural, portanto, supor que no evento comemorativo dos setenta anos da publicação das Reflexões, os argumentos de Sartre a respeito da assim chamada questão judaica, acabassem por ser interpelados por diversas questões emergentes para além do final do segundo pós-‐‑guerra: colonialismo, pós-‐‑colonialismo, feminismo, tensão entre universalismo e particularismo, fundação do estado de Israel, entre tantas. Tal diversidade de ângulos foi bem acolhida pelo colóquio de Jerusalém. O ângulo de ataque que escolhi na ocasião, para estruturar minha própria reflexão, tomou como ponto de . Este ensaio é uma versão desenvolvida a partir de texto apresentado na Conferência Internacional “Sartre’s Reflexions sur la Question Juive – 70 Years After: Anti-‐‑Semitism, Race, and Gender”, promovido pelo Centro Internacional Vidal Sassoon para o Estudo do Antissemitismo, da Universidade de Jerusalém, Jerusalém, 18 a 20 de dezembro de 2016. Agradeço a Manuela Consoni, Diretora do Instituto Vidal Sassoon, pelo convite e pela hospitalidade. 2 . Professor Associado de Filosofia Política da PUC-‐‑Rio, Pesquisador Associado da Universidade de Paris IV-‐‑Sorbonne (2019) e do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Bolsista de Produtividade do CNPq (1 A). 3. A primeira edição brasileira foi publicada em 1963. Cf. Jean-‐‑Paul Sartre, Reflexões sobre a Questão Judaica, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963. 4. Cf. https://mandelschool.huji.ac.il/sites/default/files/mandel/files/invitation_conference_sartres_reflexions.pdf. 5. Ver, em particular, Jean-‐‑Paul Sartre e Benny Lévy, L’espoir maintenant: les entretiens de 1980, Paris: Verdier, 1991. 1
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partida uma proposição de Sartre, em meio a tantas dispostas em seu ensaio, a respeito do antissemitismo como paixão. Uma paixão ancorada no que designa como la nostalgie de l’impermeabilité, sugerindo a presença de um modelo de convicção imune ao raciocínio e à experiência6. Com efeito, um bom exemplo de imunidade ao raciocínio e à experiência foi fornecido por Sartre, no correr do ensaio, na rememoração de um seu colega de Liceu, colocado na 27a posição em concurso de agregação, no qual apenas doze foram aprovados. Embora admitisse que não havia se preparado adequadamente para o exame, o colega atribuiu à aprovação do judeu Weil, entre outros judeus colocados a sua frente, a supressão da vaga que lhe deveria caber. Era mesmo incapaz de compreender como um sujeito “cujo pai veio da Cracóvia ou de Lemberg” poderia compreender melhor do que ele “um poema de Ronsard ou uma écloga de Virgílio”7. Sartre indaga: se fosse o caso de eliminar alguém acima da lista, para que o colega inconformado obtivesse melhor colocação, por que não reclamar do normando Mathieu ou do bretão Arzell, no lugar de Weil e de outros judeus inscritos na listagem? A escolha hipotética de Weil como “culpado”, posto que aprovado, demonstra segundo Sartre que o colega já possuía “de antemão uma ideia certa a respeito do judeu, de sua natureza e de seu papel social”. De modo direto, Sartre conclui: “Longe da experiência engendrar a noção do Judeu, é a noção que, ao contrário, esclarece a experiência”. Acrescenta, na mesma passagem, uma das fórmulas, se calhar, mais famosa de todo o ensaio: “se o Judeu não existisse, o antissemita o inventaria”8. Interessou-‐‑me explorar o veio aberto por Sartre que, em meio a hipóteses diversas, considera o antissemitismo como um sentimento, antes que como posição ideologicamente estruturada e racionalmente exprimível, em competição homóloga e isofórmica com proposições alternativas . Ainda que o antissemitismo possa ser abordado de um ponto de vista externalista, com base em aspectos históricos e contextuais que o abrigam e para alguns o explicam, haveria, segundo o que sugere Sartre – ou segundo o que eu busco nele entender –, uma dimensão internalista, inerente ao antissemita. É essa dimensão que procurarei também destacar e explorar neste ensaio. Mas, antes de apresentar os sentidos e as implicações do ângulo escolhido para evocar o ensaio de Sartre, creio ser importante fornecer algumas referências gerais a . Cf. Jean-‐‑Paul Sartre, Reflections sur la Question Juïve, Paris: Gallimard, 1954, pp. 21-‐‑23. . Idem, pp. 14. 8. Idem, pp. 15.
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respeito da estrutura da obra, de sua circunstância de edição e de um conjunto de debates que a antecedeu. Quatro personagens em busca de um roteiro: planos e contra-‐‑planos da obra Como disse, o ensaio foi publicado como livro em fins de 1946. Sua estrutura interna é composta de quatro partes discretas, dedicadas respectivamente a quatro personae – ou tipos -‐‑, assim denominados: “O Antissemita”; “O Democrata”; “O Judeu Inautêntico” e “O Judeu Autêntico”. Michael Walzer, em ensaio de apresentação à segunda edição norte-‐‑americana, publicada em 1976, definiu a obra como um morality play, ou como peça dotada de intenções de natureza moral, desenvolvido em torno da apresentação dos quatro personagens indicados9. Personagens que não interagem e que, de modo separado, são apresentados em cada um dos capítulos. A primeira parte do livro – a que trata do antissemita -‐‑ é, a meu juízo, a mais importante e ela que estará aqui sob juízo, na maior parte do meu próprio ensaio. Pode, sem perda de sentido, ser considerada como peça independente dos demais capítulos, tendo sido publicada de modo isolado, no terceiro número da recém lançada revista Les Temps Modernes, em dezembro de 1945, antecedendo em um ano a aparição do conjunto da obra. Naquela primeira ocasião, o ensaio recebeu o título de “Portrait de l’antisémite” – “Retrato do antissemita”. A decisão de Sartre de iniciar sua reflexão a respeito da “Questão Judaica”, tomando como ponto de partida o retrato do antissemita foi por ele mesmo justificada, em conferência havida em junho de 1947, na qual afirmou que “nada pode ser explicado se tomarmos como ponto de partida o judeu e se não começarmos por examinar a posição do antissemita”10. O ponto possui implicações fortes, pois parte da recusa em reconhecer que o antissemitismo possa ter alguma justificativa fundada na ordem da experiência, ou na própria condição judaica, qualquer que ela seja. Como veremos, para Sartre o antissemitismo é um elemento que antecede a experiência, afetando dessa forma seu modo de representação. É, portanto, no interior do antissemita que o núcleo do sistema do antissemitismo deve ser investigado e revelado. Da mesma forma, os demais tipos considerados na versão final do ensaio de Sartre exigem a apresentação prévia do Antissemita, como cláusula maior de inteligibilidade. Na “Introdução” que elaborou para . Cf. Michael Walzer, “Introduction”, In: Jean-‐‑Paul Sartre, The Anti-‐‑Semite and the Jew: An Exploration of the Aetiology of Hate, New York: Schocken Books, 1995 (1944), p. vii. 10. Cf. Jean-‐‑Paul Sartre, “Reflections on the Jewish Question”, October, 87 (Winter 1999), p. 38.
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edição-‐‑norte americana, Michael Walzer chama a atenção para o fato de que “cada um dos “personagens cria os demais”11. A construção da persona do antissemita estará aqui sob foco, na maior parte deste ensaio. No entanto, importa, ainda que de modo colateral e sumário, fornecer uma descrição dos demais tipos. O primeiro personagem da série – o Antissemita – é sociologicamente caracterizado como predominantemente constituído pela baixa classe média de cidades do interior francês, composta por funcionários públicos, trabalhadores independentes e pequenos negociantes 12 . Um conjunto de sujeitos marcados pelo ressentimento, pela perda – ou suposta ameaça de perda – de status e posição de classe: nada possuiriam, a não ser uma nostalgia herderiana da comunidade originária, fundada na língua, no lugar de nascimento e em uma história comum. A complexidade da vida moderna, segundo a descrição, apavora o antissemita. Tratar-‐‑se-‐‑ia de algo que supera sua capacidade de entendimento: a mobilidade social o desnorteia, assim como as formas modernas de propriedade (fundadas em abstrações, tais como moeda e papéis financeiros), que lhe seriam completamente misteriosas. O “judeu”, como representante da modernidade e inimigo dos franceses reais e de raiz, aparece como um sujeito iniciado naqueles mistérios, e como elemento solvente das marcas identitárias tradicionais: a terra, a propriedade real, a tradição, a ordem, o vínculo sentimental. O “judeu”, nesse sentido, condensa para o antissemita figuras díspares, mas unificadas em seu propósito de impor à comunidade nacional o abismo da modernidade: capitalistas, comunistas, ateus, traidores13. O antissemita é sobretudo alguém que deseja a eliminação do “judeu” e, por força desse móvel, “cria o judeu”. Ao fazê-‐‑lo, cria-‐‑se a si mesmo como, antes de tudo, antissemita, independentemente de sua posição diante de outras dimensões do mundo, tais como classe e pertencimento a outras esferas da . Idem, p. viii. . Utilizarei iniciais maiúsculas e formato itálico quando me referir aos personagens textuais de Sartre: o Antissemita, o Democrata, o Judeu Inautêntico e o Judeu Inautêntico. 13. Para uma edificante versão brasileira do élan antissemita, consulte-‐‑se as obras de Gustavo Barroso, em especial A Sinagoga Paulista, São Paulo: Editora Imprensa, 1937 e Judaísmo, Maçonaria e Comunismo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. Para um antídoto, também brasileiro, ver Batista Pereira, O Brasil e o Anti-‐‑Semitismo, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. Batista Pereira foi genro de Ruy Barbosa, que em suas Cartas Inglesas, escritas durante seu exílio no governo de Floriano Peixoto (1892-‐‑1894), foi um dos primeiros publicistas, em escala internacional, a defender a inocência do capitão Alfred Dreyfus. Ver, a respeito, Homero Senna, Uma Voz Contra a Injustiça: Rui Barbosa e o Caso Dreyfus, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004. 11 12
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vida. Para Sartre, o antissemitismo representa “a inautenticidade da baixa classe média”. O interesse maior, no entanto, da caracterização do Antissemita consiste em apresentá-‐‑lo como um tipo cujos motivos não decorrem de situações objetivas, mas de um móvel interno e de uma lógica passional. Esse elemento “internalista” será melhor explorado em parte subsequente deste ensaio. O segundo personagem da série é representado pelo Democrata, herdeiro da Revolução Francesa, liberal, centrista em política, defensor da decência e “amigo dos judeus”. Caracteriza-‐‑o, ainda, uma adesão inegociável à cartilha dos direitos universais do homem, para os quais exige reconhecimento pleno, generalizado e em todas as dimensões da vida. Trata-‐‑se, portanto, de um sujeito movido por uma disposição universalista. O Democrata, dessa forma, defende o “judeu como homem”, mas abomina-‐‑o como particularmente “judeu”. É, de tal modo, um epígono do constituinte francês de 1791, Clermont-‐‑Tonerre, que em meio aos debates a respeito da Emancipação Judaica, dizia: “Devemos tudo recusar aos Judeus como nação, e dar-‐‑lhes tudo como indivíduos” 14 . O Democrata defende a assimilação completa dos judeus e sua indistinção no corpo político, com o usufruto pleno dos direitos dos demais cidadãos. O termo “cidadão” é marcador de uma condição a um só tempo genérica e suficiente para inserção na vida democrática. A emancipação “real” dos judeus, tal como Marx a define em sua Questão Judaica, exige, pois, dissolução das condições que o produziram como sujeitos particulares. Uma vez superadas, não há que falar de “judeus”, a não ser na esfera privada e cultural, como sobrevivência ou arcaísmo, sem qualquer rebatimento sobre a estrutura normativa e institucional da sociedade em seu conjunto. O Democrata, portanto, é “amigo do judeu” na medida em que combate a obsessão antissemita, mas dele se afasta por não o reconhecer como sujeito de uma identidade específica. Walzer em sua “Introdução” registra que o Antissemita vive amedrontado e voltado para o passado, em sua nostalgia da comunidade pura perdida, enquanto que o Democrata vive “ingênua e sentimentalmente” no futuro. Um futuro, na verdade, marcado pela dissolução universal das diferenças, para fins de reconhecimento público particularizado 15 . O Democrata típico é o intelectual dreyfusard, defensor de um republicanismo universalista, tal como
. Apud Gary Kates, “Jews into Frenchmen: Nationality and Representation in Revolutionary France”, Social Research 56, # 1, Spring 1989, p. 225. 15. Idem, p. xiii. 14
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historicamente materializado pelo posicionamento de Émile Zola, diante do processo do capitão francês e judeu Alfred Dreyfus16. O Judeu Inautêntico consiste no terceiro personagem do plot sartreano. A seguir o mote do vínculo como o tempo histórico, trata-‐‑se agora de um tipo que vive desesperadamente no presente, em busca rotas de escape. Quanto mais insiste nesse caminho, contudo, mais entranhado fica nas engrenagens que o dispõem à fuga. Trata-‐‑se da “quintessência do homem moderno”. Mas, fuga do quê? Da “condição vazia”, originária do judaísmo. O ponto exige a consideração de algumas premissas sartreanas. Para Sartre, o judaísmo – como forma civilizatória e não como religião – configura-‐‑se no mundo moderno como categoria vazia. Resultado de “vinte e cinco séculos” de dispersão, dissolução e impotência política, os judeus são antigos, mas apesar disso constituem-‐‑se como “povo não-‐‑histórico”. Não possuem civilização própria; não podem, assim, tomar como referência qualquer conquista coletiva; nada tem a lembrar, a não ser um “longo martírio e uma longa passividade”. Claro está que Sartre constrói o tipo do Judeu Inautêntico, e nele uma imagem da experiência judaica na história, em momento anterior à fundação do Estado de Israel, além de marcado pelos efeitos da Shoah. O abismo inscrito na experiência judaica, a despeito de suas tradições, diz respeito, para Sartre, à ausência de acumulação temporal societária, assim como de um marco de soberania política próprio. De qualquer modo, o que Sartre pretende sugerir é que, por tais razões, mais do que qualquer outro grupo, seriam os judeus “perfeitamente assimiláveis” à cultura envolvente. Apenas o Antissemita representaria uma barreira e um limite para tal assimilação plena, com sua recusa renitente do judeu como sujeito impatriótico, cosmopolita e desenraizado. Uma das rotas de fuga disponíveis ao Judeu Inautêntico seria a busca da maior assimilação possível: ser mais francês do que os franceses, adotar seus modos e valores, pela via dos casamentos mistos, da conversão, do vínculo com a terra e com o país do interior, além de adotar pontos de vista conservadores nos campos da política e da moralidade. Mas, para Sartre, os caminhos da inautenticidade podem ser outros, ainda que muitos tenha...