resumos e análises de contos de 12º ano PDF

Title resumos e análises de contos de 12º ano
Author Beatriz Sousa
Course Português 11 ano
Institution Universidade de Lisboa
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Summary

“George”A singularidade de “George”, a mestria que preside à sua construção, as surpresas que nos reserva, relevam dessa arte narrativa onde a pintura, o cinema e a fotografia deixaram marcas indeléveis, testemunhando uma sensibilidade artística e uma mundividência invulgares que neste conto exempla...


Description

“George” A singularidade de “George”, a mestria que preside à sua construção, as surpresas que nos reserva, relevam dessa arte narrativa onde a pintura, o cinema e a fotografia deixaram marcas indeléveis, testemunhando uma sensibilidade artística e uma mundividência invulgares que neste conto exemplarmente se plasmam. A primeira surpresa que “George” nos reserva diz respeito ao título – nome da personagem principal – ao invés do que se esperaria, uma personagem feminina. Abreviatura provável de Georgina, o nome desta pintora consagrada de quarenta e cinco anos evoca o pseudónimo literário de duas conhecidas romancistas do século XIX: a francesa George Sand (1804-1876) e a inglesa George Eliot (1819-1880), que com a protagonista apresentam em comum, não apenas o sucesso num mundo predominantemente masculino, mas também um estilo de vida normalmente interdito às mulheres – e ainda hoje pouco aceite no sexo feminino, se bem que por muitos visto como sinal de emancipação. [...] A escolha do pseudónimo masculino corresponde, aliás, em ambos os casos, a estratégia visando mais ampla e séria aceitação das respetivas obras por parte do público. Será também o caso de George, a pintora? Não é possível ter certezas a este respeito, apenas sobre o seu sucesso. Famosa além-fronteiras, George configura [...] o protótipo da mulher independente e profissionalmente realizada, aparentemente sem razões para lamentar o passado e, ainda menos, temer o futuro. E, no entanto, esse temor assalta-a de modo tão imprevisto quanto cruel ao regressar à terra natal. É aí, nessa vila parada do interior, de onde partira vinte e três anos antes em busca da liberdade que lhe permitiria tornar-se uma artista de renome e aonde jamais regressara, que vamos encontrá-la no início do conto. Começamos por assistir a uma lenta e enigmática evolução de duas figuras ao longo de uma rua, sem saber exatamente de quem se trata, ou sequer ao certo o que se passa, com exceção do nome de uma delas e – pormenor significativo – do tempo decorrido desde a última vez que ali esteve. O conto abre-se como um filme, por um movimento de câmara mostrando essas duas figuras que, acabamos por percebê-lo ao fim de algumas linhas, são mulheres (“Trazem ambas vestidos claros”) e vão em breve cruzar-se. A câmara muda em seguida de posição, para se aproximar e deter no rosto de uma delas. A imagem, de início desfocada, só bastante depois se tornará nítida para os olhos da protagonista, que coincidem agora com a objetiva, de início colocada em lugar que a mostrava também. Quanto ao leitor, que passa a ver sobretudo com a personagem, acede antes ao retrato modiglianesco (“dois olhos largos, semicerrados, uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço algo de Modigliani”), mercê de uma voz narradora que, na sua omnisciência, antecipadamente lho revela e que, especialmente em breves perguntas que se confundem com dúvidas de George, falhas da sua memória, subtilmente se insinua [...]. Processo em muito idêntico ao da abertura do conto, ainda que mais rápido e com a focalização quase exclusivamente centrada na personagem principal, preside, perto do final, à aparição de uma segunda figura de mulher. George está agora de partida, já no comboio que a levará para longe da vila onde nasceu e das memórias de um passado que tudo fizera para esquecer, mas que o regresso ao lugar de origem inevitavelmente ressuscita. O reencontro com o passado, de que a personagem não guardara senão uma velha fotografia sua, acaba também por projetá-la no futuro, obrigando-a a confrontar-se, primeiro, com a sua juventude, logo após a referência à fotografia que é o ponto de partida para longa analepse pontuada de uma ou outra menção breve ao presente; depois, com a sua velhice – ambas figuradas nessas duas imagens de mulher com quem enceta diálogo e que são afinal seus duplos com nomes que constituem formas curtas ou alongadas de George: Gi, a jovem frágil de dezoito anos, e Georgina, a mulher idosa a rondar os setenta. Assim se configura, no conto, por meio do cruzamento de imagens e de tempos diferentes, o balanço de toda uma vida. [...] Ausente enquanto figura, a infância está presente no conto de Maria Judite na medida em que o regresso à terra natal constitui sempre um retorno aos primeiros anos de vida – e, neste caso, sendo o objetivo vender a casa dos pais entretanto desaparecidos, equivale ao seu apagamento definitivo, à sua morte, a um adeus para sempre à juventude – a uma despedida. [...] No início e no final do primeiro encontro, George e Gi movem-se lentamente, como para simbolizar a resistência da primeira, tanto a reencontrar o passado como a despedir-se dele – ou, muito simplesmente, a dificuldade de o ressuscitar, a impossibilidade de o fazer de facto voltar, exemplarmente expressa na comparação “como quem anda na água ou contra o vento”, que retoma, de forma abreviada, a frase de abertura do conto: “Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar.” Fecha-se assim por completo um círculo – o círculo do regresso à juventude. Tudo se passa, porém, diversamente aquando do segundo encontro, onde a deslocação rápida do comboio simboliza em simultâneo a morte definitiva do passado e a aceleração da marcha do tempo em direção à velhice (daí que a aparição da figura de Georgina tarde menos que a da figura de Gi). [...]

Pôde a personagem deambular incessantemente entre o presente e vários momentos do passado, imobilizado num dos seus instantes na fotografia que ressuscita Gi e assim se associa à rememoração. Nada, porém, lhe devolverá intacto esse passado que acabou de enterrar para sempre ao tomar o comboio que dele a afasta, como do presente, para um futuro longínquo... e afinal tão ou mais dececionante quanto o primeiro. Pode ainda George fugir desse futuro por um esforço mental de deslocação em direção a outro, mais próximo e tranquilizante: o da sua próxima exposição, da sua próxima viagem aos Estados Unidos, do seu regresso a Amesterdão, que acaba de encetar... Nada impedirá o tempo de avançar [...]. Muito pelo contrário. A fuga para a frente será sempre uma fuga para a frente – para o futuro da velhice e da solidão, para a Morte. Principal meio de que George dispõe para alcançar o esquecimento, a dispersão no espaço físico e mental coaduna-se com o esforço de despojamento a que sempre se obrigou ao desfazer-se de múltiplos objetos, incluindo fotos de familiares. Constitui, pois, o modo mais eficaz de apaziguar os seus fantasmas – numa palavra, a forma mais eficaz de fugir à dura verdade, que ele preferiria ignorar e que desde sempre terá tentado apagar com o auxílio da fotografia de juventude – seu “único fetiche”, único modelo de todos os seus autorretratos. Guardou-a porque essa fotografia é um retrato de juventude, um retrato que a tranquiliza assegurando-lhe que foi jovem um dia. Guardou-a, não porque continuasse ligada a um passado plenamente feliz, a um tempo irrecuperável de felicidade total. Mas sim porque essa foto representa uma idade da qual a personagem não desejaria nunca ter saído, na medida em que encerra a imagem ideal que gostaria de guardar para si mesma para todo o sempre: a imagem da beleza e da juventude intocadas, dos ideais e dos sonhos intactos e a cumprir. A imagem, enfim, de uma espécie de idade de ouro que na realidade nunca existiu – ou que existiu apenas na justa medida em que Solidão e Morte estavam ainda tão longe que não ocorriam sequer ao pensamento. Daí que George a tenha reproduzido e multiplicado nos seus autorretratos como se dela tivesse feito o projeto artístico de uma vida, como se tentasse garantir-lhe a imortalidade que só a arte é, em certa medida, capaz de assegurar – como se tentasse, antes de mais, retê-la para sempre, sustendo o tempo e aprisionando-o num dos seus fugazes e já irremediavelmente perdidos instantes.

“Sempre é uma companhia” O título do conto (“Sempre é uma companhia”) parece remeter para o benefício que, no tempo da Segunda Guerra Mundial, a introdução de um novo meio de comunicação (a radiotelefonia) traz à população de uma pequena e isolada aldeia alentejana. À semelhança dos demais contos de Manuel da Fonseca, comprova-se, neste, ser a ação “fortemente minimizada”. A intriga desenvolve-se em torno de uma peripécia banal (se bem que nomeada pelo narrador como um “extraordinário acontecimento”): um caixeiro-viajante, vendedor de aparelhos radiofónicos, engana-se no caminho e vai parar à aldeia de Alcaria, ao estabelecimento (“a venda”) do casal Barrasquinho; António Barrasquinho, o Batola, acede a ficar com um aparelho, pois intui que ele poderá ajudar a combater o isolamento, a solidão, o silêncio em que todos vivem. A mulher de Batola resiste obstinadamente, ameaçando sair de casa. O vendedor procura apaziguar o casal, deixando o rádio à experiência, durante um mês. Neste período, Batola e os habitantes das “quinze casinhas desgarradas e nuas” de Alcaria têm acesso à informação sobre o que se passa no mundo exterior (designadamente, acesso às notícias da guerra), reconfortam-se com a música, adquirem novos hábitos de convivialidade, alteram o comportamento. O relacionamento do casal Barrasquinho é, de algum modo, também ele modificado. Comecemos por verificar como é apresentado o protagonista. No incipit, afirma-se: “António Barrasquinho, o Batola, é um tipo bem achado”. Perguntamo-nos: a expressão coloquial “bem achado” dever-se-á ao facto de se tratar de alguém invulgar, cujos atos desafiam ao riso dos que o rodeiam (e do narrador)? Resultará de o comportamento de Batola os deixar estupefactos, já que, como saberemos logo de seguida, ele é improdutivo (“não faz nada”), preguiçoso (“levanta-se quando calha”) e anda sempre – um sempre que o abandono do tempo verbal no presente em prol do uso do gerúndio deixa adivinhar – sonolento (“ainda vem dormindo”)? Radicará noutros motivos? Batola é definido pelo nome próprio, o sobrenome e a alcunha; da mulher, nem sequer é dito o nome próprio. Apresentada no 2º parágrafo do texto, sabemo-la expedita, trabalhadora incansável: é ela “quem abre a venda” e atende os fregueses; depois, “volta à lida da casa”. À descrição física da mulher de Batola, dada pela tripla adjetivação “alta, grave, um rosto ossudo”, segue-se a informação sobre o seu modo de estar e de ser: o “sossego de maneiras” que a caracteriza é, afinal, sintoma da circunstância de pôr e dispor no governo da casa, quer do negócio (um negócio parco, visto a venda ser frequentada por “meia dúzia de fregueses”). Mais adiante, será confirmada esta

característica dominadora; ali, especificar-se-á que, desde há anos, ela “vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras, encomendas, negócios. Tudo vem a fazer-se como ela entende que deve ser feito”.

No 3º parágrafo do conto, iniciado pela conjunção causal “Pois”, o narrador reitera informações dadas. Movendo-se em direção oposta à da mulher, surge Batola, “com a cara redonda amarfanhada num bocejo”. À frase nominal e exclamativa “Que pessoas tão diferentes!”, sucede-se a descrição da estatura e do porte de Batola (“atarracado, as pernas arqueadas”), da indumentária que usa (o “chapeirão”, o “lenço vermelho amarrado ao pescoço”), – que identificamos como o trajar do homem alentejano. As ações de Batola (que tropeça, que se encosta) confirmam a modorra que o “chapeirão caído para a nuca” prenunciara. Sinédoque da personagem, o chapeirão continuará a representá-lo: “O chapeirão redondo volta-se, vagaroso”, lê-se na mesma página. Quase no final do conto, a mágoa sentida por Batola (convencido de que terá de devolver o aparelho radiofónico) é expressa com a indicação de que o chapeirão lhe enche “a cara de sombra”. Por hipálage, a casa onde o casal habita e trabalha é apresentada como espelho do psíquico. O narrador heterodiegético nomeia este espaço com uma negatividade que tem peso sobre o modo como as personagens são configuradas. Predizendo um ambiente opressivo, são primeiramente mencionados os “fundos da casa”, necessariamente sombrios. Estes fundos estão separados da venda por uma “portinha” e, como especificado mais adiante, por um “tabique de ripas separadas por grandes fendas” – o que permite o controlo, por parte da mulher, do que se passa na loja. Neste espaço reservado aos clientes, reinam o desleixo, a decrepitude e a sujidade: há caixotes espalhados pelo chão, que é de “terra negra”; o café é guardado numa “caixa de lata enferrujada”; Batola, enquanto atende os clientes, boceja, espreguiça-se, tem por hábito cuspir para o chão. A caracterização do espaço exterior conflui igualmente para representar os sentimentos negativos vividos pelo protagonista. Procurando vencer a indolência, Batola dirige-se ao “umbral da porta” – espaço de passagem, também ele sombrio. Ali fica, hesitante (“a oscilar o corpo”), a olhar o exterior. Personificados pela “monotonia desolada”, os campos que avista devolvem-lhe o desânimo. Por isso ele fecha os olhos, dá “meia volta” e entrega-se à bebida. Deste então, o olhar da personagem adjetivar-se-á de “mortiço” e será utilizada a sinédoque “um olho cheio de tédio”, enfatizando-se a letargia que distingue Batola. A cena escolhida para apresentar o casal situara-o, de modo intemporal (“todas as manhãzinhas”), num ponto entre o espaço privado e público. Batola e a mulher cruzam-se sem que dirijam palavra um ao outro, adivinhando-se a ausência de comunicação entre eles. As causas para essa situação vão sendo progressivamente deslindadas, a partir do momento em que a voz narradora e protagonista se começam a confundir. Esta estratégia, que, como acontece noutras narrativas de Manuel da Fonseca, contribui para a busca do “íntimo das personagens”, permite erigir um retrato convincente de Batola. Com efeito, o narrador está por dentro da personagem, sabe quais os sentimentos por ela experimentados, apropria-se do discurso de Batola, presentificando-lhe os pensamentos [...]. Com a aproximação, feita pelo narrador omnisciente, ao mundo interior do protagonista é possível aclarar os motivos para a “sonolência pegada”. Se os campos em volta lhe devolvem uma “monotonia desolada”, se no verão (período durante o qual, diz-se usando uma poética hipérbole, “o sol faz os dias do tamanho de meses”) ninguém comparece na venda a “palestrar um bocado”, a mulher apresenta-se como “silenciosa e distante”. Por isso, ele “vai ruminando a revolta”. Quando não suporta mais o distanciamento entre os dois, Batola “põe-se a beber de manhã à noite, solitário como um desgraçado”; na sequência, espanca a mulher. Acontece isto “de há trinta anos para cá”. Esta forma condensada de apresentar a passagem do tempo, elidindo outros acontecimentos, centra a atenção do leitor no abandono e solidão sentidos pelo protagonista. Mas Batola não é só o bêbedo que, não fugindo ao ambiente sociocultural característico da época e do espaço retratados, bate na mulher: ele é definido pelo jeito especial para lidar com um excluído da sociedade. De novo, o narrador heterodiegético revela uma visão interna e omnisciente dos pensamentos do protagonista; por ininterruptas associações, desvenda como o pensamento de Batola se vai formando: desgostoso, ele fecha-se num mundo de evocações. E assim chegamos à personagem de Rata, o “belo companheiro”. Mendigo e viajante, Rata figura o mensageiro, aquele que traz notícias do que se passa extramuros. Ao escutá-lo durante “tardes inteiras”, também Batola parecia viajar por “todo aquele mundo”. Esta hipérbole (o mais longe que Rata viajara fora até Beja) elucida o impressionante isolamento dos habitantes de Alcaria. Quando ficou impossibilitado de viajar “pelos longes”, Rata suicidou-se. Antes desse desfecho, Batola matara a fome do mendigo a troco de coisa nenhuma (“nem trocavam palavra”). Após o suicídio de Rata, a saudade que, “de vez em quando”,

Batola sente, agudiza-lhe a solidão. Não admira que assim seja, pois as novas trazidas por aquele companheiro eram a única hipótese de vencer o silêncio do meio [...].

A ironia com que é descrito o itinerário de Rata (“chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana”) reforça dados sobre o isolamento da aldeia e indicia a ausência de meios de transporte; deste modo, quando chega o automóvel do vendedor de telefonias, já não se estranha que seja explicitado que “fazia anos que tal se não dava na aldeia”. A propósito do uso retórico da ironia, saliente-se que ele se espalha por todo o texto, acabando por, de forma eufemística, dar conta de hábitos culturais arreigados entre a população alentejana, nos anos 40 do século XX. Por exemplo, depois de beber toda a manhã, Batola abandona “a recordação e o vinho, e vai até ao almoço. Nunca bebe durante as refeições”. Este princípio de atuação, bem como outros dados que perpassam no texto – da inexistência de cerveja na venda (só há vinho disponível) à aceitação do suicídio por parte da população, do uso da alcunha “Calcinhas” para quem usa calças de ganga, à complacência com que todos assistem à mulher a ser espancada pelo marido – dão-nos retratos socioculturais concisos de um tempo e de um espaço específicos. Nas páginas iniciais de “Sempre é uma companhia” não são apenas indiciados o isolamento geográfico, a solidão, o silêncio. Até se dar início à diegese (na véspera da chegada do automóvel), o conto está carregado de outros sinais. Na descrição da paisagem que Batola avista (quando, à tardinha, se senta no exterior da casa virado para este), não falta a indicação da tomada de corrente elétrica que entra pelo telhado da venda – dado fundamental para a prossecução da intriga. Sobretudo, de forma extraordinariamente delicada, vai-se dando conta das condições sociais indignas que os habitantes de Alcaria enfrentam. Elas são de tal ordem, que os habitantes perdem as suas características humanas. Ao invés, o mundo inanimado que os rodeia adquire-as. Vejamos como. Os homens de Alcaria são apresentados como “figurinhas” (de presépio?) que vivem em casas “tresmalhadas”. Atendendo a esta caracterização das casas (continente), os homens que as habitam (conteúdo) são aparentados com gado. Aliás, explicitar-se-á adiante, eles são “o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão”. A tudo isto acresce a falta de esperança numa vida melhor. Batola não enfrenta aquele tipo de problemas. Pelo contrário, ele dá-se ao luxo de preguiçar, bebe “o melhor vinho que há na venda”, carrega um fio de ouro no colete. Todavia, consciente da vida difícil dos demais aldeãos, ele é solidário. E partilha a condição animalesca dos conterrâneos: como já vimos, “rumina” a revolta; os suspiros saem-lhe “como um uivo de animal solitário”. Em contrapartida, tudo o que rodeia estes homens é personificado ou animizado: assim o tempo (“Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, cansada, tomba tão vagarosamente que o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada penumbra”); assim um simples motor de carro (que “ronrona”). A chegada do rádio permitiu que todos os aldeãos soubessem “o que acontec[ia] fora dali”. Proporcionoulhes a comunicação (há “assuntos de sobra para conversar”); inclusive, mudou hábitos arreigados (“até as mulheres vêm para a venda depois da ceia”). Desistirem dele significaria regressarem à vivência anterior, “recuar para muito longe, lá para o fim do mundo, onde sempre tinham vivido”. Para António Barrasquinho, o Batola, que, depois do suicídio de Rata, não tinha “ninguém para conversar”, que estava “preso e apagado no silêncio que o cerca[va]”, o rádio alterou-lhe o estado psicológico, consequentemente a ação física. Batola passou a levantar-se cedo, a “aviar os fregueses de todas as manhãzinhas”, para poder “continuar as conversas da véspera”. Ele esperava, ansiosamente, pelas notícias do meio-dia. A própria relação matrimonial sofre uma previsível alteração. Zangada durante um mês, na véspera do dia de devolução do aparelho, a mulher de Batola emociona-se a ponto de, com “um ar submisso”, revelar no olhar “uma quase expressão de ternura”. Contrastando com a atitude altiva que a caracterizara até aí, a murmurar, ela sugere ao marido que o aparelho fique, pois, conclui, “Sempre é uma companhia neste deserto”. Na verdade, o rádio, reconfortante pela...


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