A Palavramundo DE UMA Yalorixá PDF

Title A Palavramundo DE UMA Yalorixá
Author Leila Maria
Course Estudos Literários I
Institution Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Summary

Artigo sobre a vida de uma Yalorixá do interior da Bahia, no Brasil....


Description

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A PALAVRAMUNDO DE UMA YALORIXÁ Leila Maria de Jesus Pereira1

Introdução Com o propósito de cumprir as atividades da disciplina de Oficina de Texto que tem como função a orientação na produção de escritos científicos e para a reflexão de como se dá o “ato de ler” nas mulheres do Recôncavo da Bahia neste artigo, apresentarei a história oral temática sobre o ato de ler de uma Yalorixá. O objeto de estudo dessa pesquisa foi compreender a trajetória de aprendizagem da leitura de mundo através da percepção, da fé e da razão de Mãe Mariá, uma Yalorixá de 79 anos que vive atualmente na cidade de Cachoeira – Bahia. O problema aqui apresentado é de que forma foi iniciada a leitura da palavra mundo dessa mulher, como foi iniciada sua leitura das palavras e como a mesma usa o “ato de ler” através da percepção, razão e fé, tendo como objetivo principal fazer a arqueologia de como se deu essas leituras e também buscando saber as vivências que foram propiciadas a Mãe Mariá a partir da aprendizagem da leitura crítica. Para a produção deste artigo foi feita uma entrevista com Mãe Mariá e utilizado os textos “A Importância do Ato de Ler” de Paulo Freire e “História Oral: possibilidades e procedimentos” de Sônia Maria de Freitas como base para uma análise do depoimento enfatizando a história oral e o desenvolvimento do ato de ler.

Desenvolvimento Paulo Freire remonta por meio da própria memória como foi seu percorrer para a aprendizagem do ato de ler do mundo em que vivia e descobria no dia-a-dia, das palavras que se agrupavam formando textos, do universo acadêmico no qual foi se aperfeiçoando com o passar do tempo, e da palavramundo, lida e interpretada de acordo com suas vivências e aprendizagens desde pequeno. Ele demonstra que na infância aprendeu a ler o mundo através da percepção, “os textos” e “palavras” dos quais fazia leitura no canto dos pássaros, no vento que soprava a copa das árvores, nas tempestades, na água da chuva com a qual brincava de geografia inventando lagos, rios, ilhas, riachos, nas nuvens em movimentação, no cheiro das 1Estudante do Primeiro Período do Curso de História do CAHL/UFRB.

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flores, nos modos que se comportava o gato da família, no cachorro Joli, enfim, em toda natureza com a qual tinha contato. Também aprendeu com a percepção, em seu mundo imediato, o universo dos mais velhos e suas crenças, seus valores, o medo de alma penadas que, conforme ia aprimorando sua leitura de mundo perdia seus temores. A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como um mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras (FREIRE, 2009: 12).

O autor conta que a decifração da palavra emanava da leitura de seu mundo particular. A curiosidade e o apoio dos pais o proporcionaram a alfabetização naquele ambiente perceptivo, no chão do quintal de sua casa, com as palavras do seu mundo, ao invés de uma situação superposta com palavras do mundo dos adultos. A isso, atribui o fato de que ao chegar à escolinha particular de Eunice Vasconcelos, já estava alfabetizado. Nessa escola, sua leitura da frase, da sentença estava intrinsecamente ligada com a leitura do mundo, formando a leitura da palavramundo. Dando continuidade a busca através da memória por sua história, Paulo Freire expõe que o ato de ler a palavra para ele sempre se deu de forma crítica. Enquanto aluno do chamado curso ginasial, ao aperfeiçoar suas leituras, ele participou de momentos onde se dava importância à leitura crítica da palavra, ao invés de exercícios mecânicos e monótonos. Através de seus relatos, o pedagogo demonstra como aprendeu o “ato de ler” do mundo, da palavra e a junção desses dois atos primordiais na vida de uma pessoa que se compõem no ato de ler da palavramundo. Esse relato, feito com as lembranças de sua infância e adolescência é o que caracteriza a História Oral. A História Oral é a técnica pela qual se utiliza da memória de experiências humanas narradas para a produção de um conhecimento. É considerada como uma fonte para a compreensão do passado, sendo este, o passado de um indivíduo ou de um acontecimento histórico. A história oral é estimulada pelo pesquisador que interessado em algum fato, busca no entrevistado as respostas de seus questionamentos e problematizações, uma vez que este fato foi consumado, só resta para sua compreensão e estudo os vestígios posteriores que sobreviveram. Faz também parte de um conjunto de documentos biográficos onde se insere a memória e a autobiografia, que possibilitam a compreensão de interpretações, vivências e modos de agir de indivíduos, grupos ou até mesmo uma sociedade em geral que presenciaram acontecimentos interessantes para a História e para o presente. Assim como a história oral é usada na perpetuação de elementos culturais de uma sociedade como o conhecimento de

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plantas medicinais, ditados populares, crendices populares e técnicas de manejo de terra, pode ser eficiente do mesmo modo como um arquivo no qual contém dados do passado revelados oralmente. A história oral, seja ela individual ou coletiva, necessita de um conjunto de atividades que antecedem a entrevista como a criação de um problema, a elaboração de um roteiro, o levantamento de dados sobre o entrevistado e a época de interesse, utiliza de um aparato eletrônico para captar a memória e armazená-la, e posterior a gravação do depoimento, necessita de uma transcrição, revisão e leitura do que foi dito no depoimento, e a elaboração de um texto que abarque o principal motivo da entrevista, os resultados obtidos através desse método. Com o intuito de produzir um ensaio sobre a história oral de Mãe Mariá no que se refere à forma que se deu seu ato de ler através da percepção, da razão, da palavramundo e da fé, baseada no texto de Paulo Freire “A Importância do Ato de Ler”, foi feita uma entrevista onde a entrevistada expos suas lembranças a respeito do como foi sua aprendizagem do ato de ler. A metodologia utilizada foi uma entrevista oral temática realizada em sala de aula com a Mãe Mariá. Ocorreu durante uma hora e trinta e um minutos, no dia 20 de setembro de 2013, no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. A entrevista teve a participação da professora Maria de Fátima Ferreira, que ministra a disciplina de Oficina de Texto para estudantes do primeiro semestre de Licenciatura em História, a entrevistada Mãe Mariá, que é uma Yalorixá que reside em Cachoeira, e os estudantes do curso referido – turma 2013.1. A elaboração de perguntas foi feitas pelos estudantes e pela professora presentes na sala e o acontecimento foi registrado com a utilização de um gravador, notebook, aparelhos celulares e fotografias. Mãe Maria no decorrer de seu depoimento, narrou suas experiências quando criança que possibilitou a identificação do ato de ler através da percepção. Em fatos como quando seu irmão apanhou por soltar um pum sem conseguir se conter ao estar trabalhando, por só no olhar da mãe perceber uma represália, ou quando sua mãe a bateu por ter quebrado os copos que tinha levado para lavar a beira do rio “eu fui mal humorada por que eu não queria ir lavar prato nenhum, quando eu venho voltando, eu tomei do tropeço, num pé de fruta-pão que tinha no quintal, ai minha mãe inventou que eu fiz isso de propósito, quebrei os cacos de extrato que tinha lá, porque as latas não iam quebrar né, (...) ela pegou um cipó caboclo (...) me deu de cipó, cada lapiada que ela me dava, subia o vergão, e eu fiquei injuriada que eu nunca tinha apanhado”, nota-se que a leitura de mundo através de sua percepção a fez

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entender a rigidez na qual era criada ela e seus irmãos e a relação de seriedade e temor dos mais velhos com as quais os pais educavam seus filhos. Mãe Mariá percebeu também a importância dada ao ato de ler da palavra desde muito nova, conta que por ser a única que estudava entre os seus irmãos, era mimada e tinha privilégios acima de todos “mas como eu estudava, dava muito bom gosto, ai eu tinha prioridade. (...) Meu irmão, esse que morreu, pescava no Rio Paraguaçu a noite toda, pescava camarão, robalo... quem vai comer é minha filha, porque estuda, dá bom gosto, vocês não querem nada”. No que refere à aprendizagem da leitura da palavra, Mãe Mariá conta iniciou seus estudos em São Felix, depois se transferiu para Cachoeira e por fim para Salvador, concluindo assim o curso primário. Narra que ao ir perpetuar seus estudos em Salvador, sofreu preconceito por ter iniciado sua educação no interior baiano “A diretora, hum imagina, os daqui não estão sabendo nada, imagina os que vêm do interior, eu disse tá, mas eu me garanto”, e após ser submetida a fazer uma prova de seleção para estudar na escola Getulio Vargas, passou no exame sem errar uma só questão, isso fez com que ela fosse aceita na escola e ao solicitar uma gratificação por ter acertado todas as questões do exame, foi gratificada se tornando monitora da turma na qual estudava. Durante toda sua vida deu grande importância a leitura da palavramundo através da razão em decorrência da aprendizagem do ato de ler da palavra, que sempre foi qualificada, “só minha redação fez com que eu passasse no vestibular da UFBA, pesava uma redação, que eu sempre fui assim, perfeita no português.”. Desde muito nova Mãe Mariá se interessou pela aprendizagem da leitura crítica da palavra. Concluiu o ginásio em 7 de dezembro de 1957 se tornando apta para o magistério pelo instituto normal da Bahia, prestou o vestibular da UFBA no intuito de testar seus conhecimentos, fez curso de contabilidade e prestou concurso público para trabalhar no INSS, pelo qual se encontra aposentada. Estabeleceu-se na vida conforme ia aprimorando seus conhecimentos da palavra e da palavramundo, seja ao possuir lugar privilegiado tanto na infância quanto na juventude e vida adulta devido a suas formações educacionais ou ao ter um intenso caso de amor com um homem culto, Mãe Mariá demonstrou dar grande valor ao ato de ler o mundo através da razão: “Agora eu disse, não quero ser pisada por ninguém, eu tenho que estudar, porque a gente com o estudo tem voz altiva”. Além da leitura de mundo através da percepção, da palavra e da razão, Mãe Mariá possui outra maneira de ler e compreender o mundo, através da fé. Diante de febres intensas e fortes dores de cabeça, Mãe Mariá iniciou seu contato com o candomblé e desde então passou a ter uma leitura de mundo que incluía a fé num universo metafísico e místico, que estando tão presente na sua vida, fez com que se tornasse uma importante representante de sua religião

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no país “o menino tava atacado a coisa ruim, (...) Ele ia atrás (gestos) com um colega, Mauricio dirigindo e eu aqui, mais eu ia assim oi (gestos) eu disse daqui a pouco ele pega, me aperta meu pescoço que ele tava incorporado de uma coisa ruim, ai eu levei pra lá, peguei quarana logo ali na entrada ‘papapa’ fui batendo, eu digo sai este corpo não lhe pertence, que num sei que, depois peguei um banho de Abô joguei assim (gestos) e ficou, (gestos) e ai se deitou lá no quarto de Tumasia pra (...) ai queimei pólvora, ai o negócio baixou”.

Conclusão É possível concluir que foi extremamente proveitoso o método da história oral para a resolução da problemática inicial deste trabalho que se constitui em compreender as fases pelas quais passam as mulheres do Recôncavo na aprendizagem do ato de ler. Vale salientar que a entrevistada possivelmente teve um modo de aprendizagem que se diferencia dos demais tendo em vista as oportunidades de estudo para aprimorar seus conhecimentos e a leitura de mundo através da fé que é de extrema importância na sua vida. Grande parte das mulheres que viveram no século XX, principalmente as de classe baixa, não concluíram os estudos na escola ou ao menos puderam ser alfabetizadas. Como resultado dessa entrevista foi possível compreender como se deu o ato de ler de uma mulher negra nascida na década de trinta no Recôncavo Baiano que buscou o aprimoramento de sua leitura da palavramundo através da percepção, da razão e da fé. Ainda que perante acontecimentos desmotivadores, teve a oportunidade de concluir os estudos se formando em magistério, viajou por diversos países demonstrando a cultura e culinária brasileira, em especial a baiana, teve um amor intenso por um homem e sempre lutou por seus objetivos, traçando seus próprios caminhos. Mãe Mariá é o exemplo de uma mulher ousada e destemida que no contexto de uma época onde as mulheres eram educadas apenas para cuidar de um lar e de uma família, foi à procura de conhecer e interpretar o mundo a sua volta de cabeça erguida e com o desejo de ser feliz.

Referências Bibliográficas

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FREIRE, Paulo. A importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2009. p. 11 – 21. FREITAS, Sônia Maria de. História Oral: possibilidades e procedimentos. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. PRIMEIRO PERÍODO DO CURSO DE HISTÓRIA CAHL/UFRB. O Ato de Ler das Mulheres do Recôncavo. Cachoeira, CAHL/UFRB, 20 set. 2013. Entrevista a Mãe Mariá....


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