O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase - Mircea Eliade PDF

Title O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase - Mircea Eliade
Author Marcelo M Moreira
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Digitalizado e revisado por alobaalfa O XAMANISMO E AS TÉCNICAS ARCAICAS DO ÊXTASE Mircea Eliade Tradução BEATRIZ PERRONE-MOISÉ IVONE CASTILHO BENEDETTI Martins Fontes São Paulo 2002 Índice Prefácio....................................................................................... 1 Prefacio à s...


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O XAMANISMO E AS TÉCNICAS ARCAICAS DO ÊXTASE

Mircea Eliade

Tradução BEATRIZ PERRONE-MOISÉ IVONE CASTILHO BENEDETTI

Martins Fontes São Paulo 2002

Índice Prefácio....................................................................................... 1 Prefacio à segunda edição ......................................................... 13 Capítulo I - Generalidades. Métodos de recrutamento. Xamanismo e vocação mística.................................................... 15 Aproximações, 15. - A outorga de poderes xamânicos, 25. - Recrutamento dos xamãs nas regiões oeste e central da Sibéria, 27. - Recrutamento entre os tungues, 30. Recrutamento entre os buriates e os altaicos, 31. - Transmissão hereditária e busca dos poderes xamânicos, 34. - Xamanismo e psicopatologia, 37. Capítulo II - Doenças e sonhos iniciáticos................................. 49 Doença-iniciação, 49. - Êxtases e visões iniciáticas dos xamãs iacutos, 51. - Sonhos iniciáticos dos xamãs samoiedos, 55. - A iniciação entre os tungues, os buriates etc., 59. - A iniciação dos magos australianos, 62. - Paralelos entre Austrália, Sibéria, América do Sul etc., 67. - Despedaçamento iniciático nas Américas do Norte e do Sul, na África e na Indonésia, 70. - Iniciação dos xamãs esquimós, 76. - A contemplação do próprio esqueleto, 80. - Iniciações tribais e sociedades secretas, 82. Capítulo III - Obtenção dos poderes xamânicos......................... 85 Mitos siberianos sobre a origem dos xamãs, 86. - Escolha do xamã entre os goldes e os iacutos, 90. - Escolha entre os buriates e os teleutes, 93. - Mulheres-espíritos protetoras do xamã, 97. - O papel das almas dos mortos, 100. - "Ver os espíritos", 104. - Espíritos auxiliares, 107. - "Linguagem secreta" - "Linguagem dos animais", 115. - A busca dos poderes xamânicos na América do Norte, 119. Capítulo IV - Iniciação xamânica........................................... 131 A iniciação entre os tungues e os manchus, 131. - Iniciação dos iacutos, samoiedos e ostyaks, 134. - Iniciação entre os buriates, 136. - Iniciação da xamã araucana, 144. - A ascensão ritual das árvores, 147. - A viagem celeste do xamã caraíba, 149. - Ascensão pelo arco-íris, 153. - Iniciações australianas, 157. - Outras formas do rito de ascensão, 162. Capítulo V - O simbolismo da indumentária e do tambor xamânicos............................................................. 169 Observações preliminares, 169. - A indumentária siberiana, 172. - A indumentária buriate, 174. - A indumentária altaica, 176. - Espelhos e gorros xamânicos, 178. Simbolismo ornitológico, 180. - O simbolismo do esqueleto, 182. - Renascer dos

próprios ossos, 185. - Máscaras xamânicas, 190. - O tambor xamânico, 193. - Vestes rituais e tambores mágicos no mundo, 202. Capítulo VI - Xamanismo na Ásia central e setentrional: I. Ascensões celestes, descidas aos Infernos..................... 207 Funções do xamã, 207. - Xamãs "brancos" e "negros". Mitologias "dualistas", 210. Sacrifício do cavalo e ascensão do xamã ao Céu (Altai), 215. - Bai Ülgän e o xamã altaico, 224. - A descida aos Infernos (Altai), 226. - O xamã psicopompo (altaicos, goldes, yuraks), 231. Capítulo VII - Xamanismo na Ásia central e setentrional: II. Curas mágicas. O xamã psicopompo ........................................................ 243 Rapto e busca da alma: tártaros, buriates e quirguizes, 245. - A sessão xamânica entre os povos úgricos e os lapões, 248. - Sessões xamânicas: ostyaks, yuraks e samoiedos, 253. - Xamanismo entre iacutos e dolgans, 257. - Sessões xamânicas entre os tungues e os orotchis, 265. - O xamanismo yukaguir, 273. - Religião e xamanismo entre os koryaks, 277. - Xamanismo entre os tchuktches, 280. Capítulo VIII - Xamanismo e cosmologia........................... 287 As três zonas cósmicas e o Pilar do Mundo, 287. - A Montanha Cósmica, 294. - A Árvore do Mundo, 298. - Os números místicos 7 e 9, 303. - Xamanismo e cosmologia na área oceânica, 308. Capítulo IX - Xamanismo nas Américas........................... 319 Xamanismo entre os esquimós, 319. - Xamanismo norte-americano, 328. - A sessão xamânica, 33l. - Cura xamânica entre os paviotsos, 334. - Sessão xamânica entre os achumawis, 336. - Descida aos Infernos, 340.- Confrarias secretas e xamanismo, 345. Xamanismo sul-americano: rituais diversos, 355. - A cura xamânica, 359. - Antiguidade do xamanismo no continente americano, 365. Capítulo X - Xamanismo no sudeste da Ásia e na Oceania......................................................................... 369 Crenças e técnicas xamânicas entre semangs, sakais e jakuns, 369. - Xamanismo nas ilhas Andaman e Nicobar, 374. - O xamanismo malásio, 376. - Xamãs e sacerdotes em Sumatra, 378. - Xamanismo em Bornéu e nas Celebes, 381. - A "barca dos mortos" e a barca xarnânica, 387. - Viagens de além-túmulo entre os dayaks, 391. - Xamanismo melanésio, 393. - Xamanismo polinésio, 399. Capítulo XI - Ideologias e técnicas xamânicas

entre os indo-europeus.................................................. 409 Observações preliminares, 409. - Técnicas de êxtase entre os antigos germânicos, 413. - Grécia antiga, 421. - Citas, caucasianos, iranianos, 429. - Índia antiga: ritos de ascensão, 438. - Índia antiga: "vôo mágico", 442. - Tapas e diksâ, 447. - Simbolismos e técnicas "xamânicas" na Índia, 449. - O xamanismo entre algumas tribos aborígines da Índia, 456. Capítulo XII - Simbolismos e técnicas xamânicas no Tibete, na China e no Extremo Oriente............................ 463 Budismo, tantrismo, lamaísmo, 463. - Práticas xamânicas entre os lolos, 477. Xamanismo entre os mo-sos, 480. - Simbolismos e técnicas xamânicas na China, 484. Mongólia, Coréia, Japão, 499. Capítulo XIII - Mitos, símbolos e ritos paralelos................. 505 O cão e o cavalo, 505. - Xamãs e ferreiros, 510. - O "calor mágico", 514. - O "vôo mágico", 518. - A ponte e a "passagem difícil", 523. - Escada - caminho dos mortos ascensão, 527. Conclusões - Formação do xamanismo norte-asiático....... 537 Epílogo ............................................................................... 551 Índice remissivo................................................................. 555

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A meus mestres e colegas franceses

Prefácio A presente obra é, pelo que sabemos, a primeira a abarcar o xamanismo em sua totalidade, ao mesmo tempo que o situa na perspectiva da história geral das religiões; isso já declara sua margem de imperfeição, de aproximação, e os riscos que assume. Dispomos atualmente de uma massa considerável de documentos relativos às diversas espécies de xamanismo: siberiano, norte-americano, sulamericano, indonésio, oceânico etc. Por outro lado, numerosos trabalhos, importantes sob vários aspectos, esboçaram o estudo etnológico, sociológico e psicológico do xamanismo (ou melhor, de certo tipo de xamanismo). Porém, a não ser por algumas exceções dignas de nota - pensamos principalmente nos trabalhos de Harva (Holmberg) acerca do xamanismo altaico -, a enorme bibliografia xamânica negligenciou a interpretação desse fenômeno extremamente complexo no quadro da história geral das religiões. Foi como historiador das religiões que tentamos por nossa vez abordar, compreender e apresentar o xamanismo. Não temos a menor intenção de desvalorizar as admiráveis pesquisas conduzidas do ponto de vista da psicologia, da sociologia ou da etnologia: a nosso ver, elas são indispensáveis ao conhecimento dos diversos aspectos do xamanismo. No entanto, julgamos que há lugar para uma outra perspectiva - a que procuramos esclarecer nas páginas que se seguem. O autor que aborda o xamanismo na posição de psicólogo será levado a considerá-lo antes de mais nada como revelação da psique em crise ou até mesmo em regressão; não deixará de compará-lo a certos comportamentos psíquicos aberrantes ou de classificá-lo entre as doenças mentais de estrutura histérica ou epileptiforme. 1 Diremos (ver pp. 37 ss.) por que a equiparação do xamanismo a uma doença mental qualquer nos parece inaceitável, mas resta um aspecto (e é importante) para o qual o psicólogo sempre terá razão de chamar nossa atenção: a vocação xamânica, à semelhança de qualquer outra vocação religiosa, manifesta-se por uma crise, por uma ruptura provisória do equilíbrio espiritual do futuro xamã. Todas as observações e análises que possam ser acumuladas a esse respeito são particularmente preciosas: elas nos mostram ao vivo, por assim dizer, as repercussões, no interior da psique, daquilo que chamamos de "dialética das hierofanias" - a separação radical entre o profano e o sagrado, a decorrente ruptura do real. O que diz tudo quanto à importância que atribuímos a tais pesquisas de psicologia religiosa.

O sociólogo, por sua vez, preocupa-se com a função social do xamã, do sacerdote, do mago: estuda a origem do prestígio decorrente da magia, seu papel na articulação da sociedade, as relações entre os chefes religiosos e os chefes políticos e assim por diante. A análise sociológica dos mitos do "Primeiro Xamã" traz à tona indícios reveladores relativos à posição excepcional dos xamãs mais antigos em certas sociedades arcaicas. A sociologia do xamanismo ainda está por ser escrita, e estará entre os capítulos mais importantes de uma sociologia geral da religião. O historiador das religiões é obrigado a levar em conta todas essas pesquisas e seus resultados: somados aos condicionamentos psicológicos apontados pelos psicólogos, os condicionamentos sociológicos, no sentido mais amplo do termo, vêm reforçar a concretude humana e histórica dos documentos com os quais lhe cabe trabalhar. Essa contribuição concreta será ainda reforçada pelas pesquisas dos etnólogos. Caberá às monografias etnológicas situar o xamã em seu meio cultural. Corre-se o risco de não perceber a verdadeira personalidade do xamã tchuktche, por exemplo, se os seus feitos são lidos sem nenhum conhecimento sobre a vida ou as tradições 2 dos tchuktches. Cabe igualmente ao etnólogo estudar exaustivamente as vestimentas e o tambor dos xamãs, descrever as sessões, registrar os textos e as melodias etc. Procurando determinar a "história" de determinado elemento constitutivo do xamanismo (do tambor, por exemplo, ou da utilização de narcóticos durante as sessões), o etnólogo, possivelmente auxiliado por um comparatista e um historiador, conseguirá mostrar-nos o percurso do motivo em questão no tempo e no espaço; procurará localizar, na medida do possível, seu centro de expansão, as etapas e a cronologia de sua difusão. Em suma, o próprio etnólogo se transformará em "historiador", quer adote ou não o método dos ciclos culturais de Graebner-Schmidt-Koppers. Seja como for, ao lado de uma admirável literatura etnográfica puramente descritiva, dispomos atualmente de muitos trabalhos de etnologia histórica: na avassaladora "substância cinzenta" dos fatos culturais pertencentes aos povos ditos "sem história", começam a delinear-se certas linhas de força; começamos a perceber "história" onde estávamos habituados a encontrar "Naturvölker", dos "primitivos", ou dos "selvagens". É ocioso insistir aqui nos grandes serviços que a etnologia histórica já prestou à história das religiões, mas não cremos que ela possa substituir a história das religiões: é missão desta integrar os resultados da etnologia, assim como os da psicologia e da sociologia, sem por isso renunciar a seu próprio método de trabalho e à perspectiva que a define de modo específico. Por mais que a etnologia cultural estabeleça, por exemplo, as relações do xamanismo com certos ciclos culturais, ou com

a difusão de determinado complexo xamânico, não é seu objeto revelar o sentido profundo de todos esses fenômenos religiosos, elucidar o simbolismo destes e articulá-los na história geral das religiões. É ao historiador das religiões que incumbe, em última análise, sintetizar todas as pesquisas específicas sobre o xamanismo e apresentar uma visão de conjunto que seja ao mesmo tempo morfologia e história desse fenômeno religioso complexo. Mas é preciso que haja um acordo sobre a importância que se pode atribuir, nesse gênero de estudo, à "história". Como 3 já notamos repetidas vezes, aliás, e como teremos oportunidade de mostrar amplamente na obra complementar do Traité d'histoire des religions [Tratado de história das religiões]*, em preparação, o condicionamento histórico de um fenômeno religioso, embora extremamente importante (sendo todo fato humano, em última análise, um fato histórico), não o esgota completamente. Daremos apenas um exemplo: o xamã altaico escala ritual mente uma bétula na qual foram colocados alguns degraus: a bétula simboliza a Árvore do Mundo, e os degraus representam os diversos Céus que o xamã deve atravessar ao longo de sua viagem extática ao Céu; e é muito provável que o esquema cosmológico implicado nesse ritual seja de origem oriental. Idéias religiosas do Oriente Próximo antigo propagaram-se muito antes pela Ásia central e setentrional e contribuíram notadamente para conferir ao xamanismo da Sibéria e da Ásia central o seu aspecto atual. Temos aí um bom exemplo daquilo que a "história" pode nos ensinar acerca da difusão das ideologias e das técnicas religiosas. Porém, como dizíamos acima, a história de um fenômeno religioso não nos pode revelar tudo o que esse fenômeno, pelo simples fato de manifestar- se, esforça-se por nos mostrar. Nada permite supor que as influências da cosmologia e da religião orientais tenham criado entre os altaicos a ideologia e o ritual da ascensão celeste. Ideologias e rituais semelhantes afloram por quase todo o mundo e em regiões tais que as influências paleorientais estão, a priori, fora de questão. O mais provável é que as idéias orientais tenham apenas modificado a fórmula ritual e as implicações cosmológicas da ascensão celeste: esta última parece ser um fenômeno originário, e com isso queremos dizer que pertence ao homem como tal, em sua integridade, e não como ser histórico; prova disso são os sonhos de ascensão, as alucinações e as imagens ascensionais que se encontram pelo mundo afora, independentemente de qualquer "condicionamento" histórico ou de outro tipo. A explicação psicológica não esgota todos esses sonhos, esses mitos e essas nostalgias que têm por * Trad. bras. Martins Fontes, São Paulo, 1993.

4 tema central a ascensão ou o vôo: resta sempre um nódulo irredutível à explicação, e esse não-sei-quê irredutível talvez nos revele a verdadeira situação do homem no cosmos, situação esta que - jamais nos cansaremos de repetir - não é unicamente "histórica". Assim, ao mesmo tempo que se ocupa dos fatos histórico-religiosos e procura organizar, na medida do possível, seus documentos segundo a perspectiva histórica - a única capaz de garantir-lhes caráter concreto -, o historiador das religiões não deve esquecer que os fenômenos com os quais lida revelam, em suma, situações-limite do homem, e que essas situações exigem ser compreendidas e tornar-se compreensíveis. Esse trabalho de decifração do sentido profundo dos fenômenos religiosos pertence por direito ao historiador das religiões. Por certo o psicólogo, o sociólogo, o etnólogo e até mesmo o filósofo ou o teólogo terão o que dizer a tal respeito, cada um com a perspectiva e o método que lhe são próprios, mas é o historiador das religiões quem dirá o maior número de coisas válidas acerca do fato religioso enquanto fato religioso - e não enquanto fato psicológico, social, étnico, filosófico ou mesmo teológico. Nesse aspecto preciso, o historiador das religiões também se distingue do fenomenólogo, pois este último se abstém, por princípio, do trabalho de comparação: diante de determinado fenômeno religioso, limita-se a "aproximar-se dele" e adivinhar-lhe o sentido, ao passo que o historiador das religiões só atinge a compreensão de um fenômeno após tê-lo devidamente comparado com milhares de fenômenos semelhantes ou diferentes e após tê-lo situado entre eles; e esses milhares de fenômenos estão separados tanto pelo espaço quanto pelo tempo. Por razão análoga, o historiador das religiões não se limitará simplesmente a uma tipologia ou morfologia dos fatos religiosos; ele bem sabe que a "história" não esgota o conteúdo de um fato religioso, mas tampouco esquece que é sempre na História, no sentido lato do termo, que um fato religioso desenvolve todos os seus aspectos e revela todos os seus significados. Em outros termos, o historiador das religiões utiliza todas as manifestações históricas de um fenômeno religioso 5 para descobrir o que "quer dizer" certo fenômeno: apega-se, de um lado, ao concreto histórico, mas esforça-se, de outro, por decifrar o que um fato religioso revela de trans-histórico através da história. Não há necessidade de nos demorarmos nestas considerações metodológicas; para expô-las devidamente, precisaríamos de muito mais espaço do que permite um prefácio. Devemos, contudo, mencionar que a palavra "história" às vezes cria confusões, pois tanto pode significar historiografia (o ato de escrever a história de alguma coisa) quanto, pura e simplesmente, "aquilo que ocorreu" no mundo. Esta segunda

acepção, por sua vez, decompõe-se em diversos matizes: a história como aquilo que ocorreu dentro de certos limites espaciais ou temporais (história de determinado povo ou de determinada época), ou seja, a história de uma continuidade ou de uma estrutura, mas também a história no sentido geral do termo, como nas expressões "a existência histórica do homem", "situação histórica", "momento histórico" etc., ou até mesmo na acepção existencialista da palavra: o homem é um ser "em situação", isto é, na história. A história das religiões não é sempre e necessariamente a historiografia das religiões, pois ao escrever a história de uma religião qualquer ou de dado fato religioso (o sacrifício entre os semitas, o mito de Héracles etc.) nem sempre se têm condições de mostrar tudo "o que ocorreu" numa perspectiva cronológica. É certamente possível fazê-lo se os documentos assim o permitirem, mas não é obrigatório fazer historiografia para ter a pretensão de escrever história das religiões. A polivalência do termo "história" tem propiciado mal-entendidos entre os pesquisadores; na verdade, o sentido ao mesmo tempo filosófico e geral de "história" é o que mais convém à nossa disciplina. Faz-se história das religiões quando se busca estudar os fatos religiosos como tais, isto é, em seu plano específico de manifestação: esse plano específico de manifestação é sempre histórico, concreto, existencial, mesmo que os fatos religiosos que se manifestam não sejam sempre ou totalmente redutíveis à história. Das hierofanias mais elementares (a manifestação 6 do sagrado em tal árvore ou tal pedra, por exemplo) às mais complexas (a "visão" de uma nova "forma divina" por um profeta ou um fundador de religião), tudo se manifesta no concreto histórico, e tudo é de algum modo condicionado pela história. Entretanto, na mais modesta hierofania transparece um "eterno recomeço", um eterno retorno a um instante intemporal, um desejo de abolir a história, de apagar o passado, de recriar o mundo. Tudo isso é "mostrado" nos fatos religiosos, não é o historiador das religiões quem inventa. Evidentemente, um historiador que só queira ser historiador, e nada mais, tem o direito de ignorar o sentido específico e trans-histórico de um fato religioso; um etnólogo, um sociólogo, um psicólogo também podem ignorá-lo. Um historiador das religiões não: familiarizado com um número considerável de hierofanias, seu olhar será capaz de decifrar o significado propriamente religioso de determinado fato. E, para retomar ao ponto preciso de que partimos, este trabalho merece com justeza o título de história das religiões, ainda que não se desenrole na perspectiva cronológica da historiografia. Aliás, essa perspectiva cronológica, por mais interessante que possa ser para certos historiadores, está longe de ter a importância que em

geral tendem a atribuir-lhe, pois, como procuramos mostrar em nosso Tratado de história das religiões, a própria dialética do sagrado tende a repetir indefinidamente uma série de arquétipos, de modo que uma hierofania realizada em determinado "momento histórico" abarca, em termos de estrutura, uma hierof...


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